30.12.14

Falhar

Mesmo não tendo
nenhum furo
o pneu perde,
ainda assim, ar.

Mais um ano que acaba.
Mais um ano a falhar.

29.12.14

Estrangeiro

Certas coisas sem perdão
ficaram esquecidas na casa.
As manhãs enquadradas nas
fotografias sobre a cómoda,
os suspiros calorosos
na marquise virada ao jardim,
as luzes apagadas numa cama
onde nunca dormimos.

Não esperaria, assim,
o telefonema, as boas festas,
a plasticidade arrastada
do reencontro.

Por isso se cavam sepulturas no estrangeiro
para aqueles que morreram na guerra

24.12.14

Natal (2014)

De ano a ano lembram-se
pedir verso apropriado
ao aniversário do menino.

O poeta não se cansa
a repetir o pouco gosto
em escrever de encomenda.

Houve no entanto ocasião
em que antes do bacalhau
fez-se poema com sentimento.

Por isso, se de novo alguém
nisso de pedir poema se mete

o poeta manda procurar na internet.


23.12.14

vinte e três

A cada vinte e três partes
e meu passo quebra-se
desorientado
até ao dia que regressas
para colar cada peça
para ficares a meu lado.

22.12.14

Malta

Eram demasiados desenhos
para perceber um mapa
da literatura moderna
ameaçada de eterna
nos olhos tapados da malta.

Eram só riscos em cadernos
sem estradas secundárias
para o canone da escrita
muito menos da maldita
aos olhos tapados da malta.

19.12.14

Memória

Não manda versos
o poeta
fica calado, está à espera

de um convite
que não chega
nem mensagem, nem alerta.

Não manda versos
o poeta
morreu na memória dos outros.

18.12.14

Apagado

Escrevi e apaguei
umas dez vezes
o poema

era uma voz do passado
que desconfio também
futura

assustei-me como o gato
mas não corri nenhuma
rua

escrevi e apaguei
e ainda o poema
perdura.

17.12.14

16.12.14

Peso

Confessas,
dava-te jeito,
ter o poema
bem pesado
e embrulhado
pronto a comerciar.

Mas esta treta
são só palavras.
Nenhuma delas
com honra
ou direito
a perdurar.

15.12.14

Perdidos e Achados

Meteram na poesia
um preço
feito de algum ciúme,
demasiado orgulho,
nenhuma razão.

Esqueceram-se de etiquetar.

12.12.14

Engano

Um verso por ano
quanto luxo
não seria.

Também ele,
O'Neill, queria.

Também eu,
assim, me engano.

11.12.14

Vazio

Não voltarei a dizer
o copo a língua
o ser-se resgatado
continuamente
deste mundo.

Seguirei apenas
vazio concreto
carregando um fardo
alegremente
mais leve.

10.12.14

Morrer

Boca fechada,
insistia,
e as ideias
pensamentos
que fazer?

Tudo é perigo
até morrer.

9.12.14

Restos

Já fiz poemas
mais sujos
do que o outono
mais ventoso -

mas em alguma boca
eles luziram
pepitas de ouro
entre restos
de comida.

8.12.14

Abandono

Quiseste ser cidade
e transformaste-te
em abandono.

Ficaram só os nomes
historiografados
em nenhum solo.

5.12.14

Refúgio

Onde a palavra
é refúgio
para o que não sei dizer -
se bem me engano,
já aqui estivemos.

4.12.14

Sem luz

Inventaram a cidade
de luzes apagadas
apenas motores de carros
a acelerar holofotes
no meio das estradas.

A rima é um sinal que pisca
um condutor distraído
salpicos de sangue
na passagem dos peões
para outro lado.

3.12.14

Do silêncio

para o Luís Maffei

O poeta fala baixo
os olhos brilham,
o que o corpo encolhe
a alma escolhe,
a ideia vibra.

Precisa apenas do silêncio
para estar mais perto
do que se escuta.

2.12.14

Era

Arrisco a dizer que ainda são
as mesmas pessoas
os mesmos sonhos
as mesmas ambições
e até
os mesmos cigarros
quem se senta nesta esplanada
suja no meio de uma Avenida.
Só eu não sou quem era.

1.12.14

Entrecampos

Procurei em todos os cafés de Entrecampos
a nossa mesa, o teu convite,
acreditando que o sol chegara para nos
cruzarmos numa das portas do passeio.
Mas conheço-me demasiado bem:
só me aproximo
de quem foge.

28.11.14

Imitação

Tantas palavras deixei de fora
do bilhete escrito à pressa -
para mau poeta, é o que basta;
para mera história, ninguém me imita.

27.11.14

Baía

Se ao verso ainda resisto
infiro destrezas ausentadas.
Por falar, dizer-te nada,
sou uma baía de absentismo.

26.11.14

Provas

O esforço é para que não caia -
o resultado apenas silêncio.
Mas nem para tudo que aparento
posso apresentar provas dadas.


10.10.14

Olá

O olá desfez-se entre os lábios, como uma folha que desaparece com o vento. Mas ele ainda estava ali. Ficou sem mais nada o que dizer, perante o silêncio dela tão semelhante ao dele como uma face que cora perante o vazio. Na rua da incompreensão mútua, vão amar-se silenciosamente para sempre.

9.10.14

Cara

Seleciono caras no meio da multidão, podia culpar outra coisa, culpo apenas a miopia, o ar condicionado. Seleciono caras, simpatias, pronto a inventar comunhões que nunca virão a existir. Como explicar a um olhar uma teoria poética que pode nunca vir a terminar? Cansam-me as erudições e só sei viver nelas.

8.10.14

Regresso

Voltava a andar pelo passeio como se ninguém o visse. É bom voltar a estar no mundo onde te ignoram. Só te pesam os pés porque as horas, agora, se fazem de minutos que entendes melhor. Ninguém pensou que ia ser diferente. Estava-te a contar o quê?

7.10.14

Lírico

Chamou-me lírico como quem diz boa tarde e nas paredes da casa escorria a humidade do inverno que chegou quente. O corpo suado já falava o suficiente da minha pessoa, dizer mais para quê. Não faço perguntas, não quero respostas. Chamou-me lírico. Segui viagem.

18.9.14

Estado Líquido - II

Nem tudo me sai, nem tudo o que me sai é o que eu queria dizer. Esforço-me para não chorar enquanto te conto a ínfima parte daquilo que sinto. Quando me abraço a ti, sei que posso adormecer sossegado.

17.9.14

Estado Líquido

Na pele, a chuva faz-se suor a cada passo. O corpo grita por dentro, puxando-me as feições, fazendo-me soltar gemidos. As caras que passam por mim não me dizem nada. A dor torna-nos sós, isolados do mundo. A lava não escorre pela rua. O vulcão, em erupção, somos nós.

16.9.14

Menos um

Há menos um à mesa, esta noite. Aliás, há já muito tempo que a mesa se faz com menos um. Passaram poucos anos e, se a memória não mente, a presença de todos era já uma encenação do que estava para vir. Uns partiram mais depressa, sem se anunciar, até porque estavam perto demais, mesmo na ausência, para despedidas. Outros levaram-nos abraços, levaram-nos sorrisos. Ficamos nós, menos um, a ajeitar o centro de mesa para simular a ocupação do espaço.

15.9.14

Fragmentos

Aprendo a ver a vida em fragmentos, enquanto me despeço de mais um pedaço de mim. São as pessoas que partem e os hábitos que se mudam. No fundo, estamos sempre a mudar, sempre a mudar, num ritmo que nos foge do controlo. Aprender a viver com isso, um pé aqui, outro acolá, é o respirar dos sobreviventes.

12.9.14

Andar

Ando lentamente pela rua, como se pensasse os passos, como se engolisse em seco. Ando direito e vagaroso, como se inventasse desculpas para me demorar. Ando assim. Cumprimento, quase em silêncio, as caras conhecidas que passam por mim.

11.9.14

Carreiros

Podia-se escrever um poemas apenas com os nomes que deram aos carreiros na orla de Peniche. Podia-se inventar uma língua. Podia-se, só, ficar a ouvir o mar.

10.9.14

Pescador

O pescador aproveita o verão para ganhar uns trocos a trabalhar no restaurante. O dono da casa, familiar afastado, recebe-o com a compreensão dos afetos. Os empregados mais novos passam-lhe a perna sempre que podem, ficam-lhe com as gorjetas, atravessam-se na sua frente para ficar com as melhores mesas. Mas o pescador mantém-se firme. Simpático e atencioso, como só a morte que espreita - inverno adentro - pode ensinar.

9.9.14

Abóboras

Apetecia-nos abóbora e pela estrada víamos os campos cheios delas. Abóboras, por ali, à mão de semear. Apetecia-nos abóbora e teria sido fácil parar um carro e levar uma. Roubar, como se diz em bom português. Mas fazê-lo seria provocar uma falta de confiança ao produtor de abóboras, que triste e enraivecido por ser roubado, talvez as deixasse de plantar. E quando nos apetecesse abóboras, não teríamos onde as comprar.

8.9.14

Serviços

Na clínica, a analista retira sangue à velocidade de dois pacientes para cada um do seu colega na sala ao lado. Chama o nome na sala de espera, quase não o deixa sentar-se, só pergunta o essencial. A seringa penetra a pele sem um ai, o sangue é retirado, a cena repete-se. Não sei como reage o outro analista. Levou para a sua sala um velho com ar entretido que saiu de lá a dizer-lhe "cada um é como qual" e agradeceu-lhe, alto e bom som, o serviço prestado.

6.9.14

Reconciliação

Ao ler "La fête de l'insignifiance", o último livro de Milan Kundera, sinto estar perante um velho boxeur que mantém todos os golpes e efeitos no seu jogo, mas a quem a idade retira a imprevisibilidade. No entanto, ao pensar nisto, percebo que da mesma forma que o velho boxeur, também o meu olhar envelheceu.

5.9.14

Contra-relógio

Muitas vezes as coisas surgem-nos em contra-relógio e o que nos atinge não é tanto o termos de cumprir determinada tarefa o mais rápido possível, o que nos fere é que venha alguém atrás de nós, sentado no carro, a indicar-nos o caminho.

4.9.14

Aviso

Para que fique menos por dizer nas conversas que não temos, ofereço-te um diário bruto, onde me perco e invento, um dia de cada vez. Talvez pudesse ter começado por este aviso, mas, na verdade, faltou-me o tempo para ser mais certo.

3.9.14

Óculos Escuros

Queria parecer-te mais inteligente. Talvez que a minha voz se alinhavasse melhor com os barulhos da conversa da mesa ao lado. Queria também que não percebesses como caminho torto e pesado. Talvez se me sentasse antes mesmo que tu chegasses. Queria, finalmente, que pudesses ver nos meus olhos como entendia a tua face ruborescendo, numa leve ânsia de me beijar. Mas não tirei os óculos escuros.

2.9.14

Incapaz

Não há nada que se compare ao sentirmo-nos incapazes de cumprir com as mínimas expetativas que planeamos para nós. Ele lidava muitas vezes com isso mesmo. O que se passava na sua mente não tinha continuação no seu corpo. Por isso ocupava os dias a culpar o corpo, a castigar-se. Mas o corpo, o incapaz, não lhe respondia.

1.9.14

Apagamento

Experimento as palavras, que não saem agora tão naturalmente, sem referentes externos. Não me sabem a pedaços de dentro, não se vendem baratas no mercado dos meus lábios, na ponta dos meus dedos. Experimento as palavras, sempre poucas, sempre as mesmas, como quem deixou de ter medo da insignificância. Fica-me bem, neste canto, o apagamento. E sorrio.

29.8.14

Virá

Deixa a boca fechada
o olhar mortiço;
engana-os enquanto podes.
Sai à rua mal engomado
despenteia-te;
sorte não seres notado.
As mãos nos bolsos
recheados;
licença para escolher.
O que te apetecer,
virá.

28.8.14

Estacionamento pago

Não gosta das raparigas
que alternam humores
consoante os namoros
onde se estacionam.
Tão pouco acha fiáveis
os lugares pagos
e cronometrados.

27.8.14

Velho

De olhar
era cansado
o velho
no alpendre.
Esgotado
como o melão
que adivinha
o fim de agosto.

26.8.14

Lua

Era uma face nova
pouco vista por
estes lugares.
Era uma lua agendada
pronta a desvanecer.

22.8.14

História

Sempre a tentação de seguir a história,
pegar numa ponta que ficou esquecida,
percorrê-la, pisando de novo chão pisado,
em busca de reviver o ignorado pela memória.
Sempre essa tentação. 

21.8.14

Portas

Não lhe seriam pesadas as manhãs,
se os dias fossem portas abertas
onde a brisa entra sem pedir licença.

20.8.14

Desenho

O meu desenho são as lágrimas que nunca existiram,
como se fossem filhas do nada, no chão da sala.
O meu desenho é esse momento que nunca aconteceu. 

19.8.14

Estrada

Encontra-me uma estrada,
repetia eu dentro da cabeça.
Encontra-me uma estrada,
inventa-me uma filosofia,
dentro, eu, da cabeça.
Encontra-me uma estrada.


18.8.14

Dominar o mundo

Por muito pequeno que seja,
o mundo dentro do teu coração.
Por muito desconhecido,
o mundo das paisagens, dos desertos.
Por muito agreste,
o mundo das tempestades.
Por muito quente, o mundo dos fogos.
Por muito inútil que pareça
uma palavra.
A poesia vem para dominar o mundo.
Dominar o mundo.
Para sempre.

15.8.14

Carteiro

O corpo,
se quiser,
será morada,
lamentada
pelas cartas
por entregar.

14.8.14

Arriba

O corpo,
se quiser,
será arriba,
desenrolada
pedra a pedra
até ao mar.

13.8.14

Força

Não dar a sinceridade
por garantida.
Nem temer a vaidade
se forçada.

12.8.14

Silêncio

Tu gabas-me o silêncio
por saber
pouco sonoro
o soneto
que em mim escrevo.

11.8.14

Marco

Para não deixar morrer
a poesia em mim,
exercito-a
de boca fechada.

6.6.14

Soneto Quebrado (II)

Não saber nunca
como começar
ou acabar.
Ter sempre certo
que fazes tudo
mal feito.
Uma bela porcaria
ou só outra brincadeira,
para as palavras
ter certo jeito
já se sabe não ser
qualificada garantia.

Há quem lhe chame poesia,
chamemos-lhe Fred Astaire.



Da série Chamemos-lhe Fred Astaire.

5.6.14

Ombro dela

Nunca escorreguei
na Feira do Livro
mas lembro-me de chover (e muito)
e não teres trazido guarda-chuva
e me teres dito, abraça-me,
e eu te ter sorrido,
descendo seguro
pela feira vazia.



Da série Chamemos-lhe Fred Astaire. 

4.6.14

Um perdigoto

Um perdigoto
pode não dizer toda a verdade
mas torna escorregadio
aquilo que se diz
e mais ninguém ouve.
Mais ninguém me ouve.



Da série Chamemos-lhe Fred Astaire.

3.6.14

O gato Leão

A última vez que tive uma sexta-feira
ainda não conhecia um gato chamado Leão
que corre telhados e come nêsperas
e rosna aos cães como se, largada a selva,
tivesse aceitado emprego melhor
como rei do meu quintal.

Da vizinhança é ele o único a comer nêsperas
daquela árvore que cresce em terra de ninguém
e larga folhas para o cimentado chão
das traseiras do prédio. Eu invejo-lhe
as frutas e os telhados e os saltos,
mas a sexta-feira, não.



Da série Chamemos-lhe Fred Astaire. 

2.6.14

Chamemos-lhe Fred Astaire

Absinto-me mal
quando
armado em jogral
trago
gente fenomenal
a esconder
o meu eu mais banal.

Mas também Fernando Pessoa escreveria um mito, em lugar de Lily Allen, como referência sonora de um poema que ignora o bom gosto musical.


Da série Chamemos-lhe Fred Astaire. 

30.5.14

Soneto Quebrado

E quando chega aquele dia
em que me apetece escrever -
livros inteiros de poesia
obras ímpares, singulares
para mudar a forma de pensar
a literatura portuguesa -

oiço a telefonia,
danço Fred Astaire
(ou qualquer outro prevaricador
mais recente)
e a vontade passa
como as dores de dentes,

que preferiria,
mas não posso, evitar.




Da série Chamemos-lhe Fred Astaire. 

10.4.14

O Jogo (1)

O jogo é uma bolha onde entras à procura uma nova forma de respirar. Tudo o que nele acontece vai deixando em ti um rasto que demoras a explicar. Pensas que o cansaço te vai deixar dormir, mas o sono é apenas um sonho onde o jogo não acaba. Pela tua cabeça tudo vai ganhando forma de uma fotografia antiga, onde os pormenores são claros só para quem lá esteve, naquele passado cada vez mais distante. E enquanto enfrentas o ar, agora que mais uma bolha rebentou, sabes que aprendeste o caminho para o jogo que vai começar.