28.2.13

Um dia


Um dia vou dizer-te terna
como a flor sobrevivente
no meio da gusa

e tu vais sorrir de inveja
passeando teus dedos velhos
pela bainha da tua blusa.


Variação Op.23, Nuno Côrte-Real 

27.2.13

Coimbra


Redondo como o vento
fazia luz dos labirintos
deixava tudo por dizer
seu disfarce era o medo
ou o que viesse a acontecer.

Imaturo como o tempo
seguia quieto e inseguro
feito de não se encontrar
sua esperança era nada
ou o que pudesse evitar.


Variação sobre Op.29, Nuno Côrte-Real

26.2.13

Oiço ao longe


Oiço ao longe ecoando
os díspares frutos da cidade.

E o que não for um canto
talvez seja tempestade.


Variação sobre Op.42, Nuno Côrte-Real

25.2.13

Onde pareço


Onde pareço abismo
também procuro
enseada
e deixo na areia
em passos expressa
a caminhada.

Onda do mar,
como me poderás salvar?



Variação sobre 5 pequenas músicas de mar, Nuno Côrte-Real

22.2.13

Transmontana - V


Deitam-se, então, as árvores
sobre a terra
transmontana.
Demoram-se os caminhos
na solidão dos montes.
Homens e mulheres
dormindo,
horizontes esquecidos.
Como que apaziguados
vão nos sonhos
dirimindo
as lutas
que chegarão
na alvorada.

21.2.13

Transmontana - IV


A pedra, ainda a pedra,
tantos dias cruzada,
carregada,
quantas costas doridas
e calejadas.
A pedra, ainda a pedra,
é só o que resta,
e vai ficando,
quando a noite chega,
o sino para,
todos se calam.
De pedra a ponte,
de pedra o monte.
de pedra os homens
que resistem.
De pedra a memória
de pedra a fuga.
de pedra as camas
daqueles que já não dormem.

20.2.13

Transmontana - III


Baixou o Rio Malara,
é maré baixa
em toda a aldeia.
Baixou o rio
e de pouco servirá
agora a ponte,
se os carros largassem,
também,
este país.
Sob a água
ficaram agora
algumas pedras,
o caminho
para a outra margem
ali ao lado.
As mulheres compõem os lenços,
os homens coçam a cabeça.

19.2.13

Transmontana - II


Toca o sino
todas as meias horas
pela mão de Dona Inácia.
Toca o sino,
limpa-se o altar,
segue Deus satisfeito
nesta terra
onde as casas
contam histórias
sem voz.
Toca o sino
e a vida leva-se,
carregando feno
para os animais,
olhando o burro
que adormece,
chamando o preguiçoso
cão que se oferece
ao visitante.

18.2.13

Transmontana - I


Deitam-se as árvores
sobre a terra
transmontana,
ao fim da tarde,
já a sopa está ao lume.
As velhas rezam
e renovam as flores,
logo se escapando,
encostadas às paredes
do largo da Igreja.
Deitam-se as árvores
e então pedras
crescem e engolem
toda a plantação.
O tempo é lento,
o lugar silencioso,
ao fim da tarde,
quando regressam
os homens.

15.2.13

Hino


Não é vento, é um sinal
Não é frio, é um sinal
Não é manhã, é um sinal
Não é noite, é um sinal

Não é homem, é um sinal
Não é mulher, é um sinal
Não é esperança, é um sinal
Não é desejo, é um sinal

14.2.13

O Livro de Rute


Dura se gera a palavra
entre os lábios
quando está sozinha.
Doce é o gesto que atrai,
primeira elaboração
do gesto que trai.

Sozinha exerce Rute
a sua arte.

Duro é o poema
de dentes cerrados
escrito. Duro o corpo
na idade da juventude.
E Rute não se entrega,
pois ela sabe.

Rute exerce o seu poder
contra a folha de papel.

12.2.13

Se em nós tudo é distante


Se em nós tudo é distante
torne-se ponte o oceano,
o que a água afunda
a água emerge.

Se em nós já se faz noite
torne-se o olhar archote,
o que o fogo queima
o fogo ensina.

Se em nós tudo é cansaço
torne-se forte a armadura,
o que a espada fere
a espada cura.

11.2.13

Pelo teu caminho eu sigo


Pelo teu caminho eu sigo
mas no meu passo vou
abres-me estradas
eu abro-te os braços
no fim da rua, sei,
estás comigo.

Pelo teu caminho eu sigo
demoro o que demorar
mostras-me a terra
eu mostro-te o coração
no fim da rua, sei,
estás comigo. 

8.2.13

Todo o mal


Se o mal a mim chegar
fui eu que o busquei
faça-o, senhor,
por seu prazer.

Se mal a mim me faz
como a seu súbdito,
faça-o, senhor,
por meu amor.

Se toda esta coita
me é merecida,
faça-o, senhor,
por nosso bem.



Variação da cantiga “Ora faz a mim mia senhor” de Fernam Rodrigues de Calheiros

7.2.13

Às aves


À beira do lago vi
andar meu amigo
às aves.

E eu não quero dormir.
E eu só quero folgar.

À beira do lago vi
meu amigo
as aves ferir.

E eu não posso dormir.
E eu só quero folgar.

As aves meu amigo
com seu arco
atingia.

E eu não quero dormir.
E eu só quero folgar.

Mas não às que cantam
tirava ele
a vida.

E eu não posso dormir.
E eu só quero folgar.



Variação da cantiga “Vaiamos, irmana, vaiamos dormir” de Fernando Esquio. 

6.2.13

Meu coração


Saiba senhor onde
larguei sua mão
ali ficou meu coração.

Naquele lugar onde
se desfez nosso abraço
ali ficou meu coração.

E por muito que ali volte
se senhor não está por perto
longe está meu coração.

E por muito que ali chegue
se senhor está afastado
longe está meu coração.



Variação da cantiga “Vedes, senhor, u m’eu parti” de Fernam Pais de Talamancos

5.2.13

Mas vem


Bem me espanta a sua ausência
mas diz-me amigo que é por bem
eu sei que ele tarda
mas vem.

Bem me entristece esta lonjura
mas diz-me amigo de pouca dura
eu sei que ele tarda
mas vem.

Bem me magoa a sua ida
mas diz-me amigo que é sua vida
eu sei que ele tarda
mas vem.



Variação da cantiga “Disse-mi a mi meu amigo, quando s’ora foi sa via” de Fernam Rodrigues de Calheiros.

4.2.13

Amor


Amor me tem em poder
E tudo o que faço é esperar
Sinal que me possa dar.


Variação da cantiga “Coitado vivo d’amor” de Vasco Rodrigues de Calvelo

1.2.13

Sou o irmão do meio


Sou o irmão do meio,
a parede,
ninguém cede como eu cedo.

Um espaço entre palavras,
qualquer coisa por dizer.

Sou o ponto de fuga,
o intervalo,
a porta sempre fechada

Quem nunca está ausente,
mas vem sempre a seguir.