31.12.12

Fim do ano


Encontras-te assim, sem memória,
como que apagado das moradas onde estiveste.
Olhas apenas para o passado.
Essa dor toda que sentes são as coisas esparsas,
tocadas pela tua respiração,
a acomodarem-se ao teu peito.
Tinhas que ser maior e mais forte
ou mais pequeno e mais fraco.

Fugiste de muita gente porque tinhas de fugir.
Não gostas de estar metido num saco de certezas
que não sejam tuas.
Não te aceitas num lugar onde não possas ser novo.
Não te deixas envelhecer no outro,
se o outro não for da tua sintonia.
Nessa fuga acabaste também por encontrar
sentidos mais fortes onde te aproximar.
Não falas nunca de sabedoria,
mas de tanto olhar por ti,
acabaste por perceber umas quantas coisas nos outros.

Moves-te por amor. Por nada mais.
Soltas todas as tuas inseguranças
e voltas a dar as cartas sobre a mesa.
Estás convencido de que te faltam palavras,
tentas sossegar-te quanto à falta de poderes.

Habituaste-te a que o silêncio calasse também o mundo à tua volta.
Das reações não entendes mais do que pequeníssimos sussurros
e a verdade é que, podendo chegar onde quiseres,
nunca estiveste tão perto da casa onde bate o teu coração.

Quem bater à porta, ver-te-á nas roupas simples,
no corpo reconstruído, no olhar vivo.
Quem souber ler, lerá.
Quem quiser sentir, sentirá.
Não existem homens novos, por aqui.
Apenas um que continua a rasgar pelo mato uma estrada para si. 

28.12.12

Epílogo


Parece que te vejo na distância,
não vejo ninguém,
sombra que caminhas sobre as rochas.
Frágil é a vista,
forte a imaginação.

Parece que invento o meu ritmo,
apenas cito a tradição,
uma palavra outra de poema em poema.
Resistindo à memória,
evita-se a traição. 

27.12.12

Variação sobre pequeno mundo


Mais lento que o lento,
doem-lhe os passos
por do amor não ter o efeito.
Existir, por vezes,
deixa-o ao contrário,
fraca serventia tem a verdade sozinha.

Sem saber o que procura,
mais roto que o mundo
perde-se por ruas sempre iguais.
Rejeita o acessório
mas crescer não é grandeza.
No fundo é essa a sua sina.



Pequeno Mundo é uma canção de Samuel Úria. Oiça-a aqui

26.12.12

Variação sobre fria claridade


De tanto brincar com fogo
no desejo de se encontrar,
acordou na claridade,
nem são, nem a salvo

de tudo o que sentia.
Dois olhos lindos depois,
julgando sonhar enfim,
na ponta dos dedos doendo

o gelo transformado em lume
onde tudo o que era, ardia.




Fria Claridade é um poema de Pedro Homem de Mello, aqui cantado por Lula Pena

25.12.12

O pastor; a solidão - 12


Na paisagem,
bandos de cães comendo as ervas
depois das ovelhas
terem sido o repasto de lobos.

24.12.12

O pastor; a solidão - 11


Foi brutal a devoração.
Os corpos vivos em multiplicação,
a raiva bem feroz nos dentes.
Ninguém mais
acima ou abaixo da terra.
Ninguém mais de dentes verdes.
Nenhuma aldeia, habitante.
O pastor lívido, sobre uma árvore,
sem saber se vivia ou se sonhava.
O pastor lívido sem qualquer reacção.
Ele era o pastor,
conhecia a palavra e o destino.
Ele conduzia o rebanho,
sem pensar, à sua perdição.
Ele inaugurava a sua solidão,
muito antes de ser sozinho.
O pastor lívido perante o vazio,
onde nem sobrou a decomposição.

23.12.12

O pastor; a solidão - 10


Ele era o pastor, ele conduzia o rebanho.
Mas o rebanho era agora ele próprio.
Já não toda a riqueza da sua família,
que deixara de existir.
Agora havia apenas aldeia,
os habitantes – feitos uma massa só – nela,
o pastor e o seu rebanho,
a sua solidão.
Ele conduzia o rebanho
e tudo o resto caminhava para o fim.

22.12.12

O pastor; a solidão - 9


Não se pode esperar que o que é igual
possa um dia ser diferente.
Essa é a verdade a que todos nos recusamos acomodar.
Tanta rebeldia só poderá causar dor,
sabem os sábios,
mas todos nos recusamos a aceitar.
Transformamo-nos numa amálgama de nós mesmos,
somos presas fáceis, não o sabemos.
Mas sempre há quem o descubra,
muito antes de nós.

21.12.12

O pastor; a solidão - 8


A aldeia era agora uma aldeia.
Os habitantes, de tão estranhos
uns aos outros,
ficavam cada vez mais iguais.
Alimentavam-se uns dos outros
e procriavam dentro dos próprios estômagos.
A aldeia era agora uma aldeia
a caminhar para dentro de si própria.
O pastor observava, no vale.

20.12.12

O pastor; a solidão - 7


Ele sabe que não se trata de um recomeço
- afinal, estamos sempre a começar.
Os seus passos aprenderam novos caminhos
e o seu corpo modulava-se pelas sombras.
A aldeia era agora uma aldeia
e apagavam-se os traços de familiaridade
entre os seus habitantes.
A família casa a família com a família
e a memória dos homens
vai-se desfazendo dentro das mentes
que aprendem a ambicionar.
Toda a descendência da sua família
tinha os dentes verdes
e os corpos preparados para o mais básico
dos prazeres.
Todos aqueles que haviam sido jovens
eram agora os mais velhos
e só ele permanecia igual,
o mais novo dos irmãos nascidos no dia comum.
Ele era o pastor, ele conduzia o rebanho
que não parava de se multiplicar.
Os habitantes veneravam a sua passagem,
sem o compreender.
Ele descobrira a palavra
e logo aprendera a ficar calado.

19.12.12

O pastor; a solidão - 6


Reconhecer que a palavra organiza o pensamento
é o grande choque que espera adormecido
em todas as mentes que dormem ainda a sua infância.
Reconhecer essa capacidade de tudo encontrar,
naturalmente, o seu lugar.
Assim aconteceu ao pastor.
E onde há reconhecimento,
aí se situa o princípio do dilema.

18.12.12

O pastor; a solidão - 5


Todos os irmãos e os pais
tinham os dentes verdes.
Todas as suas mães
gozavam pela casa.
Homens e animais rodeavam-nas,
acossados,
querendo comer-lhes pedaços do corpo.
Ele era o pastor,
ele sabia a palavra,
e pouco faltaria para descobrir
a palavra nojo,
a palavra moral.
Todos os seus irmãos,
pais e mães,
viviam como se sobrevive,
debaixo da terra.
Ele saía para o vale, ele conduzia o rebanho,
ele descobria a solidão. 

17.12.12

O pastor; a solidão - 4


Ele era o único a saber.
Deram-lhe o cajado e empurraram-no
para o vale, ele era o pastor,
ele conduzia o rebanho,
e  à força da sua diferença
inaugurava a solidão.
Aprendeu de todas as linguagens
as palavras,
falava com as aves,
com as pedras e as árvores,
falava com os objectos
e inventava-lhes os nomes.
Só não falava com a sua gente
porque a eles todas as línguas
eram estranhas.
Ele era o único a saber.
O rebanho perseguia-o sem resistência,
toda a riqueza da sua família,
que à força da sua palavra
se multiplicava e fazia crescer,
sob os corpos,
todo o alimento de que precisavam.
Na noite, ele inaugurava
a solidão no seu quarto.
E quanto mais sabia, quanto mais o rodeavam,
maior era o seu isolamento.

16.12.12

O pastor; a solidão - 3


Dos tantos de sangue  e carne sua,
ele detinha as pernas mais fortes
e a capacidade da palavra.
Então, no seu quarto, ele inaugurava
a solidão.
Era de todas as noites a primeira,
o mais jovem de todos os irmãos
nascidos em dia comum
gritou com sentido.
Sempre a casa tinha sido feita
de grunhidos ou silêncio
e ele inaugurava a palavra dentro das paredes.
Todos acordaram em terror,
temendo a invasão,
e  bateram com os pés nas paredes,
esfregaram os cabelos com raiva
até que a palavra se repetiu.
Cercaram a sua origem e
perceberam.
A palavra era de um deles.
O pastor.

15.12.12

O pastor; a solidão - 2


Pensei que a solidão se fizesse sempre
pela exclusão –
realmente foi aqui que começou
a história do pastor.
No entanto, ele era uma casa inteira,
gente do sangue e da carne sua,
nomes que haviam surgido
entre as primeiras palavras da boca.
Ele era uma casa inteira
e o seu quarto inaugurava a solidão.
Os seus muitos irmãos,
pais e mães,
acorriam de braços abertos
à sua existência,
beijavam-lhe a fronte e davam-lhe graças
pela coragem.
Ele era o pastor, ele conduzia o rebanho.
Transportava nas mãos
a riqueza da família
que todos os dias mergulhava na terra
como quem vai alimentar as sementes
dos frutos e vegetais
fazendo amor, à bruta, com elas.
Os seus muitos irmãos e pais
chegavam a casa sujos,
os dentes verdes.
Eles eram o princípio da cadeia alimentar.
As mães sentavam-se sobre os animais da casa
e gozavam.
Limpavam as camas e os poucos objectos da casa,
acariciavam os instrumentos da cozinha
e gozavam.
Ele era o pastor, ele conduzia o rebanho.

14.12.12

O pastor; a solidão - 1

Experimenta ficar calado
- disseram-lhe –
o pastor parado no meio da estrada,
uma rua inventada entre as casas
compondo uma aldeia
onde havia apenas uma família
a crescer pelas necessidade do campo
e da fome.
O pastor parado e nenhum ruído,
já não era presente aquela frase
nem o sujeito que a fizera nascer da boca,
já não era noite, nem taberna,
o pavio do candeeiro há muito apagado
e seco.
O pastor parado e mais ninguém,
agora havia que aprender sozinho
todos os caminhos da solidão.


Nota: O pastor; a solidão é um poema inédito dividido em 12 partes. Entre 14 e 25 de dezembro será publicado neste blogue. Podem considerá-lo a minha prenda de natal. 

13.12.12

“Porque o mundo não se acabou”


Fazer dos dias uma coisa diferente, eis o desafio. Construir as horas de uma maneira nova, porque as palavras já não cabem no mesmo caminho. Fechou-se a estrada, acabaram-se os autocarros, as manhãs iguais na fila do trânsito. Acabou-se a metáfora do trabalho. No mesmo dia, um telefonema que nada diz do outro lado. Um silêncio furado, uma chamada para duas horas de um corredor artificialmente aquecido, os olhares especialistas à procura de evidências.

Mas, lá está, “o mundo não se acabou”. Há que regressar à palavra e encontrar novas estradas. Começar por recuperar, pedra a pedra, os muros caídos à volta do quintal. Embelezar o monumento não é bem a preocupação. Antes construir uma casa a partir da arqueologia da história. Colocar os pés, com força, à força, no terreno pantanoso onde acabaremos por ficar enterrados. 

Também por isso, nenhuma promessa. Apenas a vontade expressa. Nada mais que isso. 

6.12.12

Pedido

Peço apenas um pouco de claridade. Que a luz entre pela janela um pouco antes, que os sons do prédio sejam mais harmoniosos ao acordar. Peço apenas um pouco de calor. Que o conforto seja feito de peles que se tocam, que nada mais seja preciso para andarmos pela casa. Peço, ainda, alguma direção. Que os pés caminhem no sentido do encontro, que as ideias queiram ser aquilo que sempre foram. União.

5.12.12

Desconhecido

Não precisas de ter os olhos abertos para te sentires segura neste caminho. Sabes que não há pedras que te derrubem, nem ventos que te afastem. Podes descer pelos atalhos onde os teus pés te conduzem, nada há a temer no desconhecido. No fundo, somos uma partilha imensa de sensações. Onde tu fores, já sabes, irá também o que é, em ti, poesia.

3.12.12

Mudar


É o corpo a mudar, o corpo a mudar. Por uma dor invisível que não sabes localizar, onde algo se alinha, outro algo definha. É o corpo a mudar, sem idade de acontecer. Órgãos que se acomodam, à procura de lugar. O que houver para aprender, não se pode explicar. O que podes dizer, é o corpo a mudar.

1.12.12

Importante

É importante escrever, mas eu também gosto de um casaco, o café quente pela manhã, uma música suave que me vai ajudando a acordar. Eu sei, é importante o mundo, as pessoas lá fora, mas estivesses aqui e só isso contaria para que os vivos fossem vivos.

É importante a poesia, mas eu também gosto de fechar os olhos e deixar-me levar, abrir a janela e a humidade gelada a tocar-me na face, os cabelos desgrenhados, a barba por fazer, e tudo ter um sentido único e completo, porque estejas onde estiveres, estás comigo.