30.3.12

Negação

Não vou dizer que estou em negação. Talvez diga, isso sim, que a negação das coisas se tornou, agora, mais visível. Que o abrir dos olhos me fez perceber que não pertencemos bem ao lugar onde vivemos. Que uma casa pode ser um mundo inteiro, com muitas e diferentes palavras. Que o meu corpo se adapta melhor a esse balanço que, daqui, parece tão distante. Que a identidade, nesta altura da evolução, é um prato que se serve frio. Para não azedar. 

29.3.12

Fantasmas

Todos guardamos alguns fantasmas, alguns fantasmas que gostaríamos que desaparecessem. Talvez por isso eu viva tão obcecado pelo desaparecimento. Há muitos anos, durante o sono, um fantasma cumprimentou-me. Eu era pequeno, demasiado para compreender, mas já crescido o suficiente para nunca me esquecer.

O tempo passou e eu fui-me convencendo de que era coisa de crianças.

Esta noite, durante o sono, uma luz acendeu-se dentro dos meus olhos. O fantasma estava lá. Não era bem o mesmo, mas já passou tanto tempo, como me poderei lembrar com alguma exatidão?  Veio só para dizer que estava presente. Para garantir que eu não me esquecerei dele. O fantasma. O sacana do fantasma. 

28.3.12

Poetas

Cansavam-no os poetas. Com as suas poesias e as suas palavras medidas a regra e esquadro. Com as suas manias e as suas decisões definitivas sobre o nada. Com os seus epítetos e nomes velhos. Com os seus versos, tantas vezes repetidos, com as vozes, finas e estridentes, cheias de mofo. Acima de tudo, cansavam-no os poetas. No seu íntimo, ele apenas desejava que eles desaparecessem. De vez. 

27.3.12

V.

Ele era um homem e tinha a capacidade de fazer os outros sonhar. Quem o rodeava vivia fascinado com essa sua capacidade e queria, a cada momento, um novo sonho. Ele era um homem e gostava de ver os outros felizes. Oferecia sonhos.

Ele era um homem e tinha a capacidade de fazer os outros sonhar. Por ter assim sonhos já prontos, disponíveis, as pessoas desistiam de sonhar por si. Cercavam o homem e exigiam-lhe sonhos, em troca de coisas tão simples quanto sorrisos ou pratos de comida. O homem oferecia sonhos e sorria.

Ele era um homem e tinha a capacidade de fazer os outros sonhar. Mas de tanto sonhar para os outros, acabou por cansar-se. Era cada vez mais complicado sonhar para os outros, viver para os outros, oferecer para os outros. O homem ficava fechado em casa e apenas deitava sonhos pela janela, rabiscados em papéis. Quando um dia lhe abriram a porta, para saber como estava, o homem tinha desaparecido.

26.3.12

A mulher

Pode-se ser alegre e triste? A mulher senta-se no metropolitano e o seu olhar de criança encantada vai dançando pelas pessoas que se encontram no cais. As pupilas não param, tal é o estado de emoção com que estuda cada indivíduo, cada publicidade. Tem uma vida intensa, a sua curiosidade flutua à sua volta como uma imensa alegria.

Mas, de repente, uma mensagem chega ao seu telemóvel. O seu olhar ensombra-se, a boca como que desmaia numa tristeza pesada. Sobretudo, parece cansada. Responde e guarda o telemóvel, mas as respostas do outro lado parecem prolongar-se para lá da sua vontade. Não tem o mínimo controlo da situação e parece desesperada.

Ela parece tentar uma resposta mais dura e definitiva a cada momento. E sempre que guarda o telemóvel, a alegria volta a aparecer, como se suspendesse o velho mundo e fosse possível começar do zero. Mas o telemóvel não lhe dá descanso. Numa das paragens da linha amarela, ela levanta-se e desaparece.

23.3.12

Razões

Não existem razões para acreditar que as pessoas já não te reconhecem. Nem nada que indique que não tenha o mesmo valor que tinha há anos atrás. Mas talvez esse valor não fosse significativo. Primeiro, olharam-no como uma novidade que não era. Depois, como um ator secundário de um filme que estava para durar. Entretanto, nem o filme durou nem o ator se mostrou particularmente interessado em procurar um novo papel. Assim como assim, já se haviam equivocado com o seu primeiro lugar, para quê buscar um segundo equívoco? Agora que é transparente, regressa mais calmo aos papéis que um dia foram seus. Como quem visita uma casa onde viveu faz muito tempo. Como quem reconhece as alegrias mas percebe, muito melhor, todas as mágoas. Como alguém que já não sente. E só isso faz sentido. 

22.3.12

Cama

Deitamo-nos na cama que nós próprios fazemos. Diz o ditado e ele deixa-se acreditar, até porque as evidências assim acabam por comprovar. No entanto, certas camas são mais demoradas de fazer do que outras. Demoram anos, muita insistência, uma espécie de focalização extrema num objetivo que parece longínquo e inacessível. Ao contrário daquelas que, quase que por artes de magia, nos aparecem feitas pela frente.


No desfazer de camas é que não há grande ciência. Por mais complicadas que sejam de fazer, desfazem-se num simples movimento de mão. Não duram para sempre as camas  que nos dedicamos a construir.

21.3.12

Pensão

O único lugar que havia, em toda a cidade, era um pequeno quarto, numa pensão, dividido com alguns desconhecidos. No entanto, ele já tinha tido a sua dose de desconhecidos nesse fim de semana. Saíra de casa bem cedo em direção a uma cidade que desconhecia. Por lá, demorou ainda uma boa hora a encontrar a casa onde ficaria. Era dia de romaria e quem lhe oferecera uma cama estava, aparentemente, doente.


Ao chegar à casa, em lugar de uma noite de conversa com direito a quarto de hóspedes transformara-se numa noite de cuidados com uma indisposta desconhecida. A extrema simpatia da inconsciente fez com que a noite não fosse uma experiência traumática, mas ainda assim, duas noites seguidas com desconhecidos seria demasiado.

Pensou que talvez todas as cidades da região vivessem uma romaria contínua. Talvez por isso, na segunda cidade onde aportou, já todos haviam reservado os quartos para outros hóspedes. A simpatia destoutro desconhecido não era menor. As intenções as melhores. Mas ele acabou por preferir ficar à deriva pela noite.

Acabou por queimar etapas viajando, noite inteira, para cá da fronteira, de regresso a casa. Durante horas a fio, cruzou-se apenas com alguns camiões, ainda no início da viagem. Com isso, evitara a espera, a demora, a frustração. Manteve-se acordado graças à música da rádio e à adrenalina de poder ter tudo naquele instante. Correu perigo. Dormiu pouco, mas satisfeito. Na sua própria cama.

20.3.12

Tempo

Ryszard Kapuscinski fala de como, na cultura africana, o tempo não manda. As pessoas apreendem a espera como parte do mundo. Assim, as coisas não têm hora marcada. Se queres viajar, entras no autocarro e terás que esperar que esteja cheio para que a viagem comece. Ao contrário deles, nós queremos tudo para o instante seguinte. Ou o anterior. Não aprendemos a esperar.


Assim, qualquer demora se torna numa experiência dolorosa. Dói-nos algo que não chega. Magoa-nos qualquer coisa que se prolonga. E o pior é que junto a essa sensação, alinhamos uma ambição de ter mais. Então, à experiência da espera, junta-se a espera pela experiência no seu todo. Quando ela não acontece, a frustração é inevitável.

19.3.12

Estrada

A estrada era longa, longa a perder de vista, naqueles dias o calendário não era algo que importasse em demasia. Calor, estava provavelmente calor, e não fossem as janelas do carro abertas na totalidade, pode crer-se que ele suaria. Ele suava sempre bastante.


O carro andava bem menos do que ele gostaria. Tornava tudo bem mais demorado, bem mais complicado, sobretudo numa época em que já se havia desaprendido a lentidão. Mas, na verdade, sempre alguma árvore, uma casa, uma pessoa à beira da estrada lhe despertava a atenção, acabando por o alimentar de pequenos nadas.

O caminho demorava. Mas ele sabia que haveria de chegar ao destino.

16.3.12

Vivo

Portanto, de tempos a tempos regressava a essa sua ideia de começar algo que não iria nunca terminar. Pensava se isso era um problema seu ou uma consequência cultural do país onde vivia. As coisas que não acabam sucedem-se às coisas que nunca chegam sequer a começar. Os melhores tempos eram aqueles em que não pensava, sequer, nisso. Não pensava nem nos seus atos, nem na origem deles. Vivia um pouco mais vazio de significados e um pouco mais cheio de sentidos para o futuro. Ou talvez fosse ao contrário. De qualquer maneira, ele ainda estava vivo. 

15.3.12

Sede

Regressou mais tarde à cidade, nesse dia. Passava já da hora de jantar e a fome misturava-se com uma ânsia qualquer de vida. Era a sede.

No café do costume, sentou-se ao balcão e pediu algo para comer. E beber. Não passaram muitas horas para que acumulasse uma considerável soma de garrafas na sua conta.

A sede tomava conta dele em noites como essa. Não era uma necessidade de álcool, nem uma compensação de faltas acumuladas. Era apenas uma corrida contra o tempo, como se o mundo fosse acabar, como se o mundo precisasse, mesmo, de acabar. Era a sede.

14.3.12

Sem explicação

Em certos momentos do dia, um enjoo tomava-lhe o corpo todo, como se estivesse prestes a vomitar ou a perder os sentidos. Custava-lhe a caminhada, doíam-lhe as costas e os pensamentos iam ficando afetados, sempre mais, por essa tomada de consciência da morte como espetáculo doloroso.

Não lhe podia chamar doença, até porque tal enjoo não tinha cura. Um inspirar mais fundo sobre as dores nas costelas ou uma chamada de atenção para um qualquer pormenor outro da vida faziam com que tudo voltasse a estar bem. Foi acreditando que tal coisa só podia ser consequência dos livros que andava a ler.

Só nos livros as pessoas enjoam e desenjoam sem mais qualquer explicação.

13.3.12

Caminhada

Acordou bem cedo, cedo demais, tendo em conta que apenas se deitara há pouco mais de quatro horas. A sua cabeça era um despertador que não podia ser desligado. Enquanto se passeava pela cozinha, preparando o pequeno-almoço, ia abrindo armários, na tentativa de perceber o que lhe faltaria em casa. Escolheu o mercado mais longe da sua porta para fazer as compras. Entregava-se assim a uma caminhada lenta pela cidade, chegando mesmo, em parte, a sair dos limites da mesma, numa zona onde ninguém vive, apenas passam os carros que chegam ou partem.

Os olhos iam, na maior parte do tempo, no chão. Quase fechados se se cruzava com alguém. Apenas uma porta ou outra, uma janela entreaberta, lhe despertavam a atenção. Em alguns momentos quase parava, espreitando a vida para lá das paredes. Nunca via ninguém. Nenhum corpo. Nenhuma réstia de gente no meio do descalabro que era aquela zona da cidade.

Somava os artigos que precisava tendo em conta o caminho de volta. Mentalmente, ia arrumando as compras em sacos para que cada braço pudesse transportar pesos semelhantes. Doíam-lhe as costas e ficaria ainda mais maldisposto se se entregasse a um desequilíbrio de pesos, a alguns quilómetros de casa.

Na viagem de regresso, ia ficando impaciente, o suor ocupando-lhe a testa, os braços começando a latejar. Trocava os sacos de mãos, mas o equilíbrio atingido impediam-lhe a sensação de alívio. Quando chegava a casa, ficava aliviado. Não percebia bem porque sofria assim tão regularmente. 

12.3.12

Acidentes

Eu tenho é a cabeça cheia de coisas que ou não interessam ou não posso dizer. Não posso dizer tudo o que penso, seria demasiado cruel, pouco humano, desinteressante. Os pensamentos vêm muitas vezes mutilados, desencontrados, precisam de tempo para se fazerem alguma coisa, e eu sei disso e espero. Mas também tenho a cabeça cheia de sonhos, impressões, miopias. Durmo mal durante uma noite e depois gasto a viagem até ao trabalho a imaginar aviões que caem fora de aeroportos, carrinhas de transportes que chocam, na autoestrada, umas contra as outras, pessoas que se atiram para a linha do metro assim que a carruagem entra na estação. Estou sempre de olho nas pessoas que pisam a linha amarela. “Não atravesse essa linha”, penso eu, “não a atravesse agora, deixe-me apanhar o metro e chegar a casa cedo, atire-se à linha depois”. É isso que eu penso. E não o posso dizer.

As pessoas não me iriam compreender.



9.3.12

Isto (não) é um livro

Das duas uma: ou a minha memória seria uma máquina infalível, o que não é o caso, ou eu teria que me tornar numa espécie organizada de ser, o que, visivelmente, olhando a minha secretária, também não poderia ser considerado como opção. Então, estava totalmente colocado de parte o meu desejo de escrever um livro sobre os livros.

Como poderia eu encerrar esse saber enciclopédico que outros parecem manejar tão habilmente? Como faria eu essa listagem comentada de leituras e pensamentos que, daqueles que eu gosto de ler, parecem sair com tanta naturalidade? Anos e anos deixei que a minha corcunda se fosse dobrando com o peso de não ser capaz de fazer algo que muito queria. Mas não era uma desilusão. Era apenas qualquer coisa que desabrochava.

Um dia, sentado no autocarro, parado no meio do trânsito, enquanto tentava decifrar anúncios de casas, provavelmente, pouco aconselháveis, pensei que o melhor seria não fazer. Aquilo que mais desejas, não o faças. E quando, definitivamente, tiveres abandonado o teu objetivo, saberás que chegou a hora. A hora de o começar a fazer.

8.3.12

Luso-mesmo?

À procura de outra palavra onde arrumar o conceito.
Uma comunidade de povo ligado por uma forma de dizer, de escrever, o mundo.
Uma eterna sensação de estranhamento.
O mais velho morreu. Deixou por cá a inquietação.

7.3.12

Prato

Talvez o mundo comece no prato.
Aquilo que comes, aquilo que serás.
Não propriamente uma questão gastronómica.
O teu estômago sabe mais de ti do que qualquer filosofia.

6.3.12

Pastores

Os que todos acreditavam sempre lá ter estado não existiam.
Os que sempre lá estiveram eram ignorados.
Revirar as ideias feitas como encontrar um rio que corre.
O Rapaz, mesmo sentado, nunca está no mesmo lugar.

5.3.12

Aberração

Não uma questão de corpo, mas dança.
Movimento da língua em procura de harmonia.
Não com o mundo. Com todas as ideias.

4.3.12

Luso-quem?

Não só palavras, mas um estado de espírito que contamina a língua.
Sim, um ritmo.
Uma forma de re-inventar o Rapaz.

2.3.12

Chuva

Procurar a chuva não é a mesma coisa que fazer chover.
Certas lições são demasiado complicadas para se perceberem de uma forma simplificada.
E o Rapaz, esse cabrão, não simplifica. 

1.3.12

Amor

Dizes que é amor isso que sentes.
Não o consegues demonstrar.
Então pensas que abusando do Rapaz talvez lhe possas mostrar aquilo que trazes em ti.
E não há nada que o faça ficar ainda mais longe de ti.