9.8.11

Outro lado (2005)

quando se entra na casa,
ouve-se um burburinho quase cego vindo de um dos quartos.
o que poderia ser alguém a rezar o terço, num murmúrio afogado de divino,
o que poderia ser um gemido adolescente solto
                                                                        no calor da própria descoberta,
é, enfim, um pequeno rádio que pretende resistir à morte
encontrando energia em pilhas há muito gastas.
abrindo a porta do quarto, os olhos acomodam-se ao escuro
e o relato do futebol aparece já infiltrado na decoração.

quase sempre, uma estranha noção do amor.
nas suas maneiras de vestir, nos seus avisos de chegada,
quase sempre um amor maltratado, embrutecido, conflituoso,
pedra de lágrimas, animal.
quase sempre, os homens. calças vestidas na ausência dos sentidos,
uma eterna saudade de um colo materno utópico.
quase sempre, no amor, o não saber como o fazer.

há uma luz esguia ao fundo da cidade.
talvez não o reconheças,
                                mas o fundo da cidade está arrumado depois da estrada.
seguimos sempre as placas, como se desejássemos viver pelas normas,
                                                                             pelas autoridades parentais.
e depois chegamos ao fim pensando, sou crescido, mas não sei.
aparece então, no lugar do silêncio, essa luz esguia,
olhos que brilham na sala escura.
e mais uma vez retorna ao pensamento, não sei.

ensaiámos sinfonias de carícias quando ainda só palavras nos podiam servir
e acabámos muitas vezes por adormecer ao som dos vizinhos que partiam
                                                                                                 para o trabalho.
fizemo-nos andar de olhos vermelhos pela rua e adormecemos, outras noites,
nos braços incrédulos de quem mais nos amava.
a tudo isso dedicámos um silêncio escrupuloso
e desenhámos notas nos cadernos de música amarelecidos.
enfim, a sorte, ou o automóvel, ligou-nos os dedos como se cosem as meias:
com linha forte e para sempre.
agora dormimos noites pelos sofás, sinais de camas proibidas,
e aceitamos os erros um do outro, quando nada se aceita de um amor.
para não cairmos em tentação,
                                        fechamos os olhos e olhamo-nos em intermitência.

quis saber da cor cinzenta do nosso último beijo,
alaranjado pelos candeeiros da tua rua fria,
dia de chuva que anoitece.
quis saber dos teus dedos enrolados nos cabelos,
uma brisa de perfume no meu sono ofertado
e deixei-te sair como quem parte.
fiquei ainda no silêncio do carro a ver-te entrar no prédio.
não sei se percebeste que sorria.

eu vou-te dizer sem maiúsculas,
o que será de nós em tantos anos,
vou fazer um gesto sem pronúncia
e inventar o voo dos coelhos.
vou-te dizer o tamanho da morte,
vou-te criar, assim, em palavras,
e depois
serei contigo o silêncio, todos os dias, as manhãs.
e ainda incluo no cardápio, a prosa, o amor, um penso rápido.


in Registo de Nascimento, Livrododia, 2005.