23.8.11

Crescido (2005)

eu não estou a correr e também não estou a chegar.
parado é simplesmente um modo imperfeito de ser dinâmico.
eu paro e olho para ambos os lados da estrada.
por muito que duvide do que vejo, uma coisa me é garantida:
eu não estou a correr e também não estou a chegar.

se me sento à mesa de um café, é para poder estar um pouco mais ausente.
por muito que até a mim soe estranho, preciso de ver outras pessoas
para finalmente me sentir ausente em plenitude.
então, fixo o olhar nas mesas vazias e imagino-me triste.
levanto timidamente a minha mão e peço um café.
o empregado atende-me sem ter que me dar qualquer importância.
espalhadas pelos cantos estão as outras pessoas, as que não me vêem.
eu deixo que o café me toque os lábios e sorrio para dentro.

o que importa, no fazer colecções,
é o gozo que está na repetição do que encontramos.
se é grande a alegria de ver crescer a colecção,
maior é aquele sentimento de bonomia,
aquele sorriso que nos invade por dentro,
quando dizemos, já tenho, fico com o repetido.
é nesses momentos que percebemos que não estamos sós.

os dias
e depois tudo tudo
sempre a andar para trás.

tinha cinco seis anos
talvez
mais coisa menos coisa
lembra-se
e o pai a andar por casa
despido.
sabia de cor
as noites em frente à televisão
e tinha os olhos grandes
muito sempre muito abertos.
diziam que era
calado.

ah sim, mais velho, pois
a escola a rua a escola
meteu as mãos nas virilhas
durante o banho
meteu as mãos no pénis
sem pensar em ninguém
em nada
descobriu-se
durante o banho.
ah sim, mais velho, pois
o quero-me quero-te ao infinito
como as equações no quadro
sim
meteu as mãos ao pénis
meteu

fechou a porta do quarto
quando apareciam pela face
as primeiras sombras do bigode.
fechou
a porta
e no quarto vestiu casacos em cima de casacos.
fechou
do quarto
a porta.
o que se via era a sombra.
a sombra só.

lembra-se, lembra-se de tudo tudo
os cinco os seis os doze os quinze
lembra, lembra-se
infinitamente
em todos os momentos,
como se pode esquecer
o pai e a mãe sentados na mesa da cozinha
os irmãos a brincar cada um numa ponta da casa
lembrar lembrar
noites em frente da televisão
alguém que bate à porta
o avô morreu
lembrar lembrar
o silêncio de quem não fala
sentados na cozinha
deitados na cama
lembra-se, lembra tudo,
o corpo o corpo o corpo
quem é que tem corpo quando a cabeça estala e explode
mil pedaços de lembranças
a que não se consegue escapar.

in Registo de Nascimento, Livrododia, 2005